Com melhoria da qualidade, vinho rosé ganha prestígio.
Na pérgula do Copacabana Palace, pergunto a Valérie Rouselle, conhecida no paraíso dos rosés, a Provence, e no mundo vinícola apenas como “Madame Valérie”, que vinho escolheria — tinto, branco, champanhe ou o próprio rosé — se fosse condenada à morte e o carrasco lhe oferecesse, no lugar do tradicional cigarrinho, uma última garrafa de safra excepcional.
Ela fecha os olhos antes de responder.
— Você vai dizer que é marketing, e é, sim. Mas também é sincero: eu escolheria esta garrafa aqui, este rosé batizado La vie en rose, nosso novo lançamento. E explico: eu pensaria que passei uma vida magnífica. Então, antes de morrer, gostaria de um vinho leve, um vinho carpe diem, no espírito de aproveitar o instante presente deste último dia de um modo aéreo, leve e fugaz: exatamente como a vida é, aliás, rápida como um relâmpago — improvisa, poeticamente, a proprietária do Château Roubine, que, só em 2016, experimentou um crescimento de 50% na venda de rosés, principal vitrine de suas terras, que também produzem tintos de guarda e brancos.
Se fosse por uma qualidade intrínseca, ela admite, porém, que escolheria um tinto ou um branco, talvez mesmo de outra região, como a Borgonha. Mas, poucas décadas atrás, ela não poderia citar um rosé decente nem para um momento agradável, de celebração da vida, ou para acompanhar uma simples refeição:
— Há 22 anos, quando adquiri a propriedade, o rosé sequer era considerado um vinho. No universo dos conhecedores e mestres, havia o tinto, o branco e o champanhe. Eram as três referências. Pois hoje o rosé é um vinho de verdade.
Os motivos, ela explica, são vários, e têm a ver com o boom turístico na Côte d’Azur a partir dos anos 1960, a chegada de capital tecnológico, e o trabalho duro dos pequenos proprietários para transformar um vinho para consumo próprio no que hoje se pode traduzir, parafraseando o lema da revolução francesa, em três palavras: partage, fraîcheur et légèreté (compartilhamento, frescor e leveza). Mas há, também, o fator comportamental: o mundo mudou, e muito.
— O rosé é, hoje, um vinho social, que se impôs com a evolução dos costumes: as pessoas buscam descomplicar, sair do “não sei o que é isso”, desapegar, fugir, e partilhar a experiência num piquenique, numa piscina, na praia, num terraço. É um vinho fácil, que, além de tudo, simplifica o entendimento dos casais: quando um quer o tinto e o outro quer o branco, o rosé resolve. Não devemos negligenciar tampouco o aquecimento global: o rosé se bebe a 11 ou 12 graus…
Madame sabe das coisas… Num mundo que se quer simples (mas não é), as pessoas não gostam tanto de comprar com o intelecto, mas com os olhos: achar a cor bonita (a paleta inclui dezenas de matizes, de pele clara e casca de cebola a púrpura intenso); a garrafa, elegante; o rótulo, sedutor. Desde que seja da Provence (cuja produção é 88% rosé), está bom para Madame…
Mas chega de conversa. Não estamos no château, mas na Pérgula do Copa: tem que respeitar, e está na hora de degustar os três vinhos que Madame Valérie trouxe para acompanhar o café da manhã (no Brasil, eles são encontrados através da World Wine). E aí é que a gente percebe que esse papo de simplicidade e leveza não é tão simples e leve assim.
— Santé! — celebra Madame, e é agradável o sorriso desta francesa nascida em Saint-Tropez, exilada em Deauville no extremo oposto, formada em hotelaria em Lausanne (Suíça) e, enfim, proprietária e moradora de um castelo localizado num ponto central, entre os Alpes e o mar (que comprou à base de financiamento) na região de sua infância. Percurso que faz desta pioneira, hoje, a presidente de uma associação que congrega mulheres produtoras na Provence.
Então, vamos beber e sentir. O.k., o La vie en rose, de cor salmão, tem mesmo esse glamour flutuante, mais para o feminino. Suas três cepas (grenache, cinsault e tibourin) dão um sabor redondo com uma notinha cítrica e talvez um maracujá soando nas cordas vocais, o que pega muito bem à beira do mar tropical.
Já as sete uvas do segundo vinho, o Premium, de grau cru classé, cor de casca de cebola, trazem uma certa sobriedade e apaziguadoras aragens de baunilha que cheiram a tradição: os vinhos de corte (mistura de cepas) formam o caráter mais marcante da Provence, e o Château Roubine tem 13 cepas para todo tipo de viagem.
Mas é no terceiro, Inspire, que se começa a acreditar nesse papo de que rosé é vinho sério, de gente grande e pensante. A frivolidade da cor de pêssego esconde a grande surpresa: em seu frescor, um mundo de sofisticação insólita, de aroma defumado e amadeirado, apesar de não se usarem barris na propriedade. É uma madeira florestal, de terra antiga que os romanos cultivaram (a propriedade fica perto de uma via romana), banhada por riachos subterrâneos que amenizam a falta de chuva, e cujas colheitas têm que ser em plena madrugada, para aproveitar o frescor meio alpino antes da maceração (as cores do rosé são conseguidas pelo tempo em presença da casca, e jamais por mistura de tinto e branco prontos, o que é proibido na região).
Mas, voltando ao Inspire, seu sabor é daqueles que dispensam grandes descrições, sendo melhor, simplesmente, experimentar o mistério à base de 80% de tibourin, uva local que esteve, há dez anos, seriamente ameaçada de extinção.
— O Inspire é meu grande vinho, e eu o criei em 2008, ano da separação do pai de meus três filhos (o maior medalhista de esgrima francês, Philippe Riboud). O nome do vinho vem do fato de termos nos inspirado na melhor safra para fazê-lo. Era uma cepa que estava desaparecendo e que, quando eu quis replantar, não achei. Mas tínhamos ainda as suas raízes num conservatório de 90 anos que mantemos, e decidimos cloná-lo. O resultado foi milagroso.
Após esse discurso, o repórter já está naquele estado em que se é tomado por um tipo de euforia que faz com que se passe de uma taça a outra, como num laboratório imaginário. Já havia concluído que o primeiro vinho ia bem com manga, figo e melão. O segundo fazia uma ótima combinação com salmão. E o terceiro? Observo, nesse instante, um pequeno pedaço de blue cheese que havia colhido do bufê. Faço uma tentativa com o Inspire e eis que chego ao resultado perfeito. Ao perceber, Madame Valérie arregala os olhos:
— Que intuição! Um mestre sommelier na Provence um dia e veio me dizer que era o vinho ideal para um roquefort. Eu não acreditei, e disse: “Nunca!”. Ele retrucou: “Ficaabsolutamente genial”.
Ou seja: para um não-connoisseur, acho que passei no teste da Madame. Ou será que é marketing?
Fonte: http://oglobo.globo.com/